Fonte das matrículas portuguesas e comboios prussianos
Várias vezes me perguntam “qual a fonte das matrículas portuguesas”. A resposta rápida é: não é uma fonte. É um desenho técnico; do ponto de vista de um engenheiro e do legislador. Contudo, esse desenho técnico tem uma história curiosa.
Quem nasceu antes de 1980 recordar-se-á bem das antigas matriculas automóveis portuguesas: uma placa preta com um par de letras e dois pares de algarismos brancos em relevo. Para a quantidade de veículos automóveis em Portugal desde 1 de Janeiro de 1937, este modelo serviu as necessidades, mesmo dispensando combinações de letras como CU ou FD, por permitirem interpretações diversas.
Em 1991, o aumento de veículos em circulação tornava eminente a escassez de números. Portugal aproveitou a aproximação da entrada na União Europeia (UE) para alterar as matrículas em 1992 (Diário da República n.º 197/1991, Série I-B de 1991-08-28). A mudança foi radical: o fundo passou a branco, os caracteres a preto, invertendo a sequência dos algarismos e letras e introduzindo a barra azul com as estrelas europeias. Anos depois, em 2005 e 2006 novas disposições obrigaram a ajustar o formato mas a base manteve-se: fundo branco com caracteres pretos, código do país e as estrelas da UE do lado esquerdo e o ano e mês de registo do veículo do lado direito. As letras usadas desde 1992, não foram especificadas como “fonte” como hoje nos habituámos. A portaria 884/91, que legislou estas alterações indica que as letras:
“(…) obedecerão ainda à Norma Portuguesa NP-89, relativa a desenho técnico de letras e algarismos, para o tipo de escrita redonda média.“
Norma Portuguesa NP-89
A “Norma Portuguesa de Desenho Técnico” ou NP-89 é o documento que normaliza o desenho técnico de letras e algarismos. A norma foi revista em 1963 no âmbito do artigo 9º do Estatuto de Normalização (Decreto Lei N.º38801 de 25 de Junho de 1952, portaria 20239) e segundo o Instituto Português de Qualidade, foi substituído pela (DIN) EN ISO 3098-5 em 1997, que actualizou para o desenho assistido por computador (CAD) os prévios desenhos técnicos manuais.
A esta distância não há detalhes sobre qual foi a referência ou detalhes da norma de desenho das letras da NP-89. Perante a escassez de informação, segui as duas pistas que identifico: a primeira é a descrição do texto legal “…escrita redonda média.”. Esta descrição é-me familiar! É idêntica a uma letra técnica alemã de 1936 exactamente criada para este tipo de aplicação e descrita como “escrita média” (Schriften Mittelschrift), que serviu de referência para desenhos de matrículas de vários países europeus.
A segunda tem a ver com a forma de adopção de normas técnicas. Há uma metodologia que indica qual a sequência a seguir na inexistência de norma NP. Nesse caso deve-se adoptar as Normas Europeias (EN), seguido pelas Normas Portuguesas harmonizadas com as Normas Europeias (NP EN) e por aí fora. Em 1952 esta sequência deveria ser diferente, visto que as as EN e NP EN não existiam e a norma internacional ISO era recente (1947). A norma alemã (Normenausschuß der deutschen Industrie ou NADI, futuro DIN) era a referência mais antiga (1917), provavelmente a mais próxima a usar para complementar a NP.
Sem dados sobre o que se passou em 1952, qual investigador, peguei na máquina fotográfica, vulgo telemóvel e fotografei uma série de matrículas na tentativa de desvendar o mistério. O resultado e a conclusão a que cheguei parecem confirmar a minha suspeita.
Imagens de letras e algarismos de matrículas portuguesas
Segundo os estudos comparativos que fiz dos caracteres, acredito na forte probabilidade de que o desenho da NP-89 tenha seguido o influente tipo de letra alemão desenvolvido para este tipo de aplicações; a norma DIN 1451-2 de 1936.
Norma DIN 1451
A origem das letras DIN 1451-2 é pitoresca; teve origem no desenho das letras pintadas à mão nos comboios prussianos, algures entre meados e finais do século XIX. Em 1905, a Real Administração Ferroviária Prussiana no âmbito e pela necessidade de regulação do então “Império Alemão” (ou 2º Reich), elaborou um documento técnico1 para normalizar essas inscrições. O documento não tinha quaisquer tinha ligações a questões de estilo ou forma, servia apenas para definir a estrutura de construção das diversas letras. As letras foram simplificadas, fazendo recurso a formas geométricas. Com indicações claras e precisas qualquer pintor podia reproduzir as mesmas letras em qualquer local do império de forma homogênea.
Locomotiva prussiana da viragem dos séculos XIX—XX
Em 1917 surgiu o comité para os Padrões da Indústria Alemã, cujo nome foi evoluíndo, acabando por ficar conhecido como DIN (Deutsches Institut für Normung). Em 1931 foi criada a pré-norma 1451, baseada nas formas das letras do documento prussiano de 1905. Em 1936, com alguns ajustes, a pré-norma transformou-se na norma DIN 1451-2; o tipo de letra usado para “letras para transportes“2. Este tipo de letra incluía três fontes: Engschrift (versão condensada), Mittelschrift (versão média) e Breitschrift (versão expandida), posteriormente descontinuada. Em 1980 as letras foram revistas e ajustadas.
Aparentemente a norma alemã DIN 1451-2 ou variações da mesma, foram usadas para as matrículas actuais nos diferentes estados membros europeus excepto… na Alemanha3. Talvez não pela razão que imagina, mas devido a acontecimentos longínquos também. Mas a razão fica para outra história!
Para quem procura uma fonte similar à das matrículas, pode optar pela FF DIN, recriada em 1995 a partir da norma DIN 1451-2, ajustada e alargada em 2015.
Notas
1 Musterzeichnung IV 44 Ausgabe 3
2 https://www.din.de
3 Na Alemanha as DIN 1451 foram usadas nas matrículas até 1998.
Referências
http://www.worldlicenseplates.com/
https://dre.pt/application/dir/pdf1s/2006/06/111A00/40524060.pdf
https://www.typografie.info/3/Schriften/fonts.html/din-1451-r214/
https://www.typolexikon.de/schriftnorm/
https://www.fontshop.com/families/ff-din